Digo, para mim, que há, todos os dias, uma hora insuportável, lá para o fim da tarde, quando o dia e a noite começam a travar a batalha surda e estúpida que antecede, inevitavelmente, a derrota do dia.
Durante uma hora, ou coisa que o valha, não é dia nem noite e tudo começa a ficar escuro e cinzento dentro e fora de cada um. As cores ficam neutras, baças, envergonhadas e, dentro da alma de cada um, a vida começa a escoar-se pelos cantos e pelos becos até ficar tudo tão triste e tão morto como um chorão das margens do rio, em tempo de seca.
Confesso que, para mim, esta é a hora trágica do dia. Nunca consegui fugir-lhe, fingir que não dou por ela ou esconder-me a ponto de a esquecer.
Aconteça o que acontecer, todos os dias, à hora do cinzento, dou comigo a perguntar-me se valeu a pena ter vivido e feito o que fiz ou que não fiz durante o dia. Todos os dias, aconteça o que acontecer, chego à hora do cinzento derrotada e vencida. Quando o cinzento me caça na rua, fujo a sete pés para um refúgio, para um café, para casa de uma amiga, para uma biblioteca ou livraria, para um local qualquer onde haja luz eléctrica, barulho, ruído de vozes. Todos os dias, fujo de mim mesma, rindo, falando alto, abraçando amigos, fazendo o que posso para me afastar das dúvidas, das perguntas, da tristeza infinita que acompanha sempre, dentro e fora de mim, a chegada do cinzento.
É a essa hora que me vejo com maior crueza e que me dou conta da minha covardia, da minha fraqueza e do meu comodismo. É a essa hora que faço contas e que vejo o que ando a fazer e no que ando a perder inutilmente a vida. Às vezes, o cinzento caça-me a meio da estrada, entre dois pontos distantes, vindo do nada e a caminho do nada. Caça-me com um comentário de alguém, com uma sombra que atravessa a estrada, com uma luz perdida num vale distante, que acordam em mim a consciência esquecida de que chegou a hora baça e triste de encarar a realidade.
Esta semana, o cinzento apanhou-me entre a casa e a escola e deixou-me derreada, mais morta que viva, automaticamente desligada das pessoas que me acompanhavam e que por mim passavam, tão metida comigo mesma e com as coisas que trago em mim, que não teria ficado mais só se me tivessem abandonado no centro de um deserto qualquer.
Tudo isto estupidamente, inutilmente, imbecilmente, porque não há nada que me impeça (senão coisas sem significado algum) de romper as amarras e de redescobrir a aventura e o desafio da vida. Nada, mesmo nada. Tudo o que tenho a perder é feito de inexistências anteriores, de coisas que não contam, de explorações de que estou a ser vítima por minha própria culpa, por culpa do meu comodismo, da perda das qualidades que tinha de saber arrancar. Por culpa desta mania de fazer cerimónia com os outros, que se apossou de mim e que está a minar-me por dentro e a substituir-me pela covarde indigna de mim mesma em que me estou a transformar.
Tudo isto me vem, todos os dias, com o cinzento do virar da folha do calendário, com a consciência perfeita e iniludível de que não tenho outra oportunidade, de que estou num ponto que não é o meu e que não me interessa.
Li, um dia destes, que vale a pena viver...
Quando sopra o temporal, tenho de me fazer à vida para conservar a pele da alma, para não me afundar nos pântanos dos outros, para continuar de cabeça erguida, para não me desfazer em mil doações de mim mesma que acabam por enriquecer os cabedais dos outros, mas que me deixam mais pobre que sei lá o quê. Eu não sou pobre como sei lá o quê, gaita! Ando com uma fome danada de fazer coisas e passo o meu dia a cozinhar para os outros... !
Li, um dia destes, que vale a pena viver...
Nota à margem: Todas as pessoas devem pensar.
Ao correr da pena